[um capítulo para entusiasmar as leituras de férias]
Parte Um, Tempo
Estou aqui parado mais uma vez. Não olho para os lados, posso cruzar os lasers com alguém indesejado. Há qualquer coisa neste lugar que me atrai. Acho que porque não sei bem onde estou. Mas sei que não posso aqui ficar muito tempo. Ainda não me conhecem. Ainda. Já me localizaram duas vezes, mas nunca me apanharam. É uma questão de tempo. E de sorte. Isso só me faz querer voltar mais depressa.
Parte Dois, Bolor
Olhava-o de frente. Talvez um pouco de cima, afinal, alguns centímetros fazem a diferença. Os olhos dele fechavam-se durante segundos, incapazes de conter o nervosismo. Até ser capaz de balbuciar mais uma pergunta. Chegou mesmo a inclinar-se sobre a mesa, confiante que finalmente tinha uma arma na mão. Nem lhe passava pela cabeça que eu poderia ter uma no bolso. Que eu realmente tinha uma no bolso.
Foi apenas um segundo. Talvez tenha pestanejado uma vez mais. Não foi certamente o suor gorduroso que lhe escorria da testa e lhe dava aquele ar de pivot de canal de televisão de bairro, onde nunca se ouviu falar de maquilhagem. Que assentava na perfeição, tal como o fato completo em dia tórrido. E o nó de forca ao pescoço, injurioso cilício que alguns aceitam por conta da falta de competência. Não foi certamente mais que uma décima de segundo. Desviei-me e disparei sem hesitar. Uma e outra vez. Segui com o olhar o sangue quente a pairar enquanto sentia o indicador a percutir semínimas sem hesitação. Os meus tímpanos explodiam com o eco na pequena e miserável sala.
O silêncio saturava o ambiente e tornava-o quase irrespirável. Foi apenas um momento em que o imaginei a atacar e lhe respondi. Estava preparado. Estava motivado. Nunca o tinha desejado, era uma sensação nova. A imaginação entusiasma-se com a novidade. Estava na hora de terminar com o impasse. Saí com a sensação que não me tomou por inimigo. Que é demasiado arrogante para se sentir fraco. Que está obeso de traição e intriga e lerdo de acção e reacção.
O sol radiante do exterior empurrou-me o ar quente para os pulmões. A deslocação de ar provocada pelo passo apressado limpava rapidamente o cheiro a bolor. A míldio. Retirei a arma do bolso e travei-a de novo. Em pleno dia, uma arma na mão, ainda que por momentos, parece um risco menor que o tempo que esteve destravada no bolso. À minha volta tudo parece normal. Mas acho que isso é aceitável para quem decidiu engolir o comprimido vermelho. Nenhum coelho à vista. Tão século XX.
Parte Três, Imagem
A imagem no espelho parece normal. Mais um dia de trabalho. Gostava de perceber como há pessoas que conseguem levantar-se para “apenas mais um dia”. Como é possível? Em “apenas mais um dia” podemos morrer. Em “apenas mais um dia” podemos ficar milionários. Em “apenas mais um dia” podemos viver exactamente mais um dia! “Mais um dia, mais uma viagem” – com o som roufenho do megafone do carrossel.
A imagem no espelho parece normal. Mas afinal é isso que interessa, que não desconfiem quem sou na realidade. Podia ser um milionário excêntrico e anónimo, com uma imagem normal. Podia ser um génio da Internet, com uma imagem normal. Podia ser um assassino, um polícia à paisana, um barbeiro, um médico, um mecânico. Com uma imagem normal. Podia ser o que quisesse, com uma imagem normal. Com uma imagem normal, podia ser o que quisesse. Por trás desta imagem normal, posso ser o que quiser.
A imagem no espelho parece normal. Eles ainda não sabem quem sou.
Parte Quatro, Escuridão
Estamos ofuscados pela inteligência. Eles associam poder e conhecimento, confundindo simbiose com parasitismo. Apontam-nos os seus poderosos holofotes. Por vezes conscientemente, outras vezes já sem o perceberem. E nós perdemos a capacidade de fechar os olhos e pensar.
Preciso de silêncio e escuridão. Consigo sempre ouvir a minha voz. Depois regresso e consigo manter a energia fundamental.
Esta rua quase deserta simboliza o fim-de-semana. Semana. Fim-de-semana. Semana. Fim-de-semana. Chicote. Cenoura. Chicote. Cenoura. Mantém os olhos bem fechados para os teres completamente abertos.
Parte Cinco, Armas de indução maciça
Eles são insolentes. Têm o hábito de nos tratar como dependentes, contribuintes, utentes e outras formas de subserviência. E, mais grave ainda, pensam que têm esse direito. Pensam que o adquiriram com as armas de indução maciça. Com as leis que instituíram para nos explorar em seu próprio benefício. Com a ilusão que o nosso dever é o de contribuir para um sistema que dizem ser a nossa representação. Pois bem, ouçam a minha resposta.
Quero dizê-lo com toda a clareza. Com a certeza que não nasci menor ou maior. Que não vivo para ser pior ou melhor. Quero dizê-lo de forma simples.
Não!
Parte Seis, Confissão
Imagino-me a ser apanhado e interrogado. Perguntam-me quantos matei até hoje. Respondo “nenhum”. E é verdade. Em teoria.
Nasces em Spandau, fazes 16 anos, és recrutado, és um nazi. Nasces em Huambo, fazes 12 anos, és recrutado, és um guerrilheiro. Nasces em Cartum, fazes 8 anos, és recrutado, és um sapador. Nasces em Vila Nova de Foz Côa, fazes 6 anos, és recrutado,…
Onde tu nasces pode decidir quem tu és. Alinhar ou desertar? A diferença é mínima. Afinal, trata-se apenas de ser morto mais tarde ou mais cedo.
Parte Sete, O mito dos heróis
Não estava fácil resistir. Escondi-me. Deixei-os passar, senti-os próximo mas não me manifestei. Afinal, foi uma coisa que aprendi com eles. São dissimulados. Fuinhas. Fingem não perceber, resistem à adversidade, apenas para voltar com mais força. Não são fortes, mas são inteligentes. Não são invencíveis, mas conservam muito bem a energia.
Escondi-me. Apenas porque não era o momento certo para ser derrotado. O preço dos heróis está demasiado inflacionado. Talvez por isso o mercado dessa raça esteja fraco. Pululam os ratos de sacristia, as doninhas da secção e as hienas da assembleia. Faltam os líderes da razão, os comandantes com visão e os soldados com competência. Quem criou o mito dos heróis? Quem os quer ver mortos. Um inimigo infiltrado.
Escondi-me. Mas agora estou de volta. E eles continuam por aí. Mas eu estou mais forte.
[continua]
Parte Um, Tempo
Estou aqui parado mais uma vez. Não olho para os lados, posso cruzar os lasers com alguém indesejado. Há qualquer coisa neste lugar que me atrai. Acho que porque não sei bem onde estou. Mas sei que não posso aqui ficar muito tempo. Ainda não me conhecem. Ainda. Já me localizaram duas vezes, mas nunca me apanharam. É uma questão de tempo. E de sorte. Isso só me faz querer voltar mais depressa.
Parte Dois, Bolor
Olhava-o de frente. Talvez um pouco de cima, afinal, alguns centímetros fazem a diferença. Os olhos dele fechavam-se durante segundos, incapazes de conter o nervosismo. Até ser capaz de balbuciar mais uma pergunta. Chegou mesmo a inclinar-se sobre a mesa, confiante que finalmente tinha uma arma na mão. Nem lhe passava pela cabeça que eu poderia ter uma no bolso. Que eu realmente tinha uma no bolso.
Foi apenas um segundo. Talvez tenha pestanejado uma vez mais. Não foi certamente o suor gorduroso que lhe escorria da testa e lhe dava aquele ar de pivot de canal de televisão de bairro, onde nunca se ouviu falar de maquilhagem. Que assentava na perfeição, tal como o fato completo em dia tórrido. E o nó de forca ao pescoço, injurioso cilício que alguns aceitam por conta da falta de competência. Não foi certamente mais que uma décima de segundo. Desviei-me e disparei sem hesitar. Uma e outra vez. Segui com o olhar o sangue quente a pairar enquanto sentia o indicador a percutir semínimas sem hesitação. Os meus tímpanos explodiam com o eco na pequena e miserável sala.
O silêncio saturava o ambiente e tornava-o quase irrespirável. Foi apenas um momento em que o imaginei a atacar e lhe respondi. Estava preparado. Estava motivado. Nunca o tinha desejado, era uma sensação nova. A imaginação entusiasma-se com a novidade. Estava na hora de terminar com o impasse. Saí com a sensação que não me tomou por inimigo. Que é demasiado arrogante para se sentir fraco. Que está obeso de traição e intriga e lerdo de acção e reacção.
O sol radiante do exterior empurrou-me o ar quente para os pulmões. A deslocação de ar provocada pelo passo apressado limpava rapidamente o cheiro a bolor. A míldio. Retirei a arma do bolso e travei-a de novo. Em pleno dia, uma arma na mão, ainda que por momentos, parece um risco menor que o tempo que esteve destravada no bolso. À minha volta tudo parece normal. Mas acho que isso é aceitável para quem decidiu engolir o comprimido vermelho. Nenhum coelho à vista. Tão século XX.
Parte Três, Imagem
A imagem no espelho parece normal. Mais um dia de trabalho. Gostava de perceber como há pessoas que conseguem levantar-se para “apenas mais um dia”. Como é possível? Em “apenas mais um dia” podemos morrer. Em “apenas mais um dia” podemos ficar milionários. Em “apenas mais um dia” podemos viver exactamente mais um dia! “Mais um dia, mais uma viagem” – com o som roufenho do megafone do carrossel.
A imagem no espelho parece normal. Mas afinal é isso que interessa, que não desconfiem quem sou na realidade. Podia ser um milionário excêntrico e anónimo, com uma imagem normal. Podia ser um génio da Internet, com uma imagem normal. Podia ser um assassino, um polícia à paisana, um barbeiro, um médico, um mecânico. Com uma imagem normal. Podia ser o que quisesse, com uma imagem normal. Com uma imagem normal, podia ser o que quisesse. Por trás desta imagem normal, posso ser o que quiser.
A imagem no espelho parece normal. Eles ainda não sabem quem sou.
Parte Quatro, Escuridão
Estamos ofuscados pela inteligência. Eles associam poder e conhecimento, confundindo simbiose com parasitismo. Apontam-nos os seus poderosos holofotes. Por vezes conscientemente, outras vezes já sem o perceberem. E nós perdemos a capacidade de fechar os olhos e pensar.
Preciso de silêncio e escuridão. Consigo sempre ouvir a minha voz. Depois regresso e consigo manter a energia fundamental.
Esta rua quase deserta simboliza o fim-de-semana. Semana. Fim-de-semana. Semana. Fim-de-semana. Chicote. Cenoura. Chicote. Cenoura. Mantém os olhos bem fechados para os teres completamente abertos.
Parte Cinco, Armas de indução maciça
Eles são insolentes. Têm o hábito de nos tratar como dependentes, contribuintes, utentes e outras formas de subserviência. E, mais grave ainda, pensam que têm esse direito. Pensam que o adquiriram com as armas de indução maciça. Com as leis que instituíram para nos explorar em seu próprio benefício. Com a ilusão que o nosso dever é o de contribuir para um sistema que dizem ser a nossa representação. Pois bem, ouçam a minha resposta.
Quero dizê-lo com toda a clareza. Com a certeza que não nasci menor ou maior. Que não vivo para ser pior ou melhor. Quero dizê-lo de forma simples.
Não!
Parte Seis, Confissão
Imagino-me a ser apanhado e interrogado. Perguntam-me quantos matei até hoje. Respondo “nenhum”. E é verdade. Em teoria.
Nasces em Spandau, fazes 16 anos, és recrutado, és um nazi. Nasces em Huambo, fazes 12 anos, és recrutado, és um guerrilheiro. Nasces em Cartum, fazes 8 anos, és recrutado, és um sapador. Nasces em Vila Nova de Foz Côa, fazes 6 anos, és recrutado,…
Onde tu nasces pode decidir quem tu és. Alinhar ou desertar? A diferença é mínima. Afinal, trata-se apenas de ser morto mais tarde ou mais cedo.
Parte Sete, O mito dos heróis
Não estava fácil resistir. Escondi-me. Deixei-os passar, senti-os próximo mas não me manifestei. Afinal, foi uma coisa que aprendi com eles. São dissimulados. Fuinhas. Fingem não perceber, resistem à adversidade, apenas para voltar com mais força. Não são fortes, mas são inteligentes. Não são invencíveis, mas conservam muito bem a energia.
Escondi-me. Apenas porque não era o momento certo para ser derrotado. O preço dos heróis está demasiado inflacionado. Talvez por isso o mercado dessa raça esteja fraco. Pululam os ratos de sacristia, as doninhas da secção e as hienas da assembleia. Faltam os líderes da razão, os comandantes com visão e os soldados com competência. Quem criou o mito dos heróis? Quem os quer ver mortos. Um inimigo infiltrado.
Escondi-me. Mas agora estou de volta. E eles continuam por aí. Mas eu estou mais forte.
[continua]